sábado, 24 de agosto de 2013

_O DE SEMPRE SENHOR? _NÃO. TRAGA-ME O CARDÁPIO!



Era quase meio dia, hora do almoço, quando uma das paciências se esgotou.
- Gacê, Deus deve ficar triste quando te ouve falar dessas coisas. Dessas novas crenças e referencias que insultam sua doutrina e seus ensinamentos. Aceite seu Deus pai, todo poderoso e será mais feliz. Só Ele pode te dar conforto e te reservar a paz eterna. Deixe Jesus ser seu amigo e governar a sua vida – suplicava Camilo com uma veemência, verdadeiramente, tocante.
- Como pode alguém que nunca vi e nem conheço, governar a minha vida? E pelo que sei, é a única que tenho. Quem garante que deus é soberano, que criou toda a existência e a ele, todos devem obediência e temor? – questiona Gacê pacientemente.
A Bíblia sagrada – profere Camilo. Ela é a palavra e lá esta escrito!
Camilo. – Gacê inclina-se fitando os olhos de seu amigo. – você sabia que a milhares de anos atrás a divindade na terra era representada pela mulher e que, posteriormente, por uma série de descobertas e interpretações, a mulher sai de cena e dá lugar ao homem? Sabia que deus já foi representando por um falo? Sabia que a humanidade já foi e nos dias atuais, algumas tribos e ate países ainda são regidos pelo politeísmo?
O que me diz das outras religiões não cristãs e suas doutrinas tão adversas que regem, até hoje, a vida de centenas de milhões de homens em todo o mundo?
Não estou pedindo que abandone sua crença, mas seria interessante que você pesquisasse, lesse outros livros que relatam a história da humanidade sob várias óticas e instrumentos. Conheça a ciência, seus efeitos e constatações. Conheça, principalmente em outros livros, a metamorfose frenética do comportamento e do pensamento humano durante os tempos.
Bem antes da invenção da escrita o homem procura de alguma forma registrar sua cultura, sua organização social e suas descobertas. Diversos documentos, relatos, objetos, fósseis, experimentos, monumentos e principalmente, os livros, em todas as partes do mundo, durante os tempos, abrem um leque variado para interpretações livres a respeito de nossos questionamentos mais básicos.
- Eu não acredito em nada do que você está dizendo. - Camilo rejeita serrando os olhos numa incredulidade quase irônica.  – eu acredito na Bíblia e isso basta para que eu seja fiel ao meu Deus e seu filho amado, Jesus.
Gacê suspira recostando na cadeira daquele pequeno restaurante das horas dos almoços de longos 25 anos. Com as duas mãos entrelaçadas, apoiando a cabeça pela nuca, sorri e sugere ao amigo que os estômagos já deveriam estar fartos das bocas dançarem tanto e nada descer pelas goelas.
- Vamos almoçar amigo!
- Já é tempo! Diz Camilo com certo alívio e pesar!
- Posso te fazer uma pergunta? – Gacê inclina-se sobre a mesa em direção ao amigo. – Você está em uma caverna. Perdido numa mata. Há cinco dias você padece com frio, medo e muita fome. Aí então eu apareço numa noite, trazendo um pote grande com uma quente e deliciosa sopa de arroz, e lhe ofereço. O que você faz?
- Como é claro! – Camilo responde sob a fresta de um sorriso curioso.
- E que gosto tem a sopa de arroz?
- De arroz, obviamente! – Camilo sorri sob as portas escancaradas de um sorriso debochado.
- O que matou sua fome Camilo?
- A sopa de arroz do meu amigo Gacê! – Diz gargalhando como quem pergunta aonde você quer chegar com isso tudo.
- E se ao invés da sopa eu lhe trouxesse numa mochila, vários potes e neles, pedaços de frango ensopado, purê de batatas, feijão com pedaços de bacon, arroz branco, verduras frescas, porções de lombo defumado, postas de peixe grelhado, frutas frescas, chocolate e um frasco de vinho, meu amigo Camilo?
- Nossa! – Sussurra Camilo fechando os olhos em êxtase. – Eu comeria todos é óbvio!
- E qual desses sabores matou a sua fome?
Camilo paralisou o rosto e um silêncio ilustrou, talvez, o que existia antes da grande explosão ou das primeiras palavras de Deus no momento da criação. Sua duração? Talvez como a que é preciso para dar uma volta no universo ou a mesma que tem a vida eterna no céu. Um silêncio denso e paradoxal, quebrado por Camilo, numa resposta maior que a fé e menor que um átomo.

- Todos.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

ESTÁTUA QUENTE





O Problema nem é a dor, mas o calo que compromete a estética da minha vida.
Crava-me o sinal frio e traumatizado da blindagem.
Desidrata meu coração como se faz com ameixas que secas, dão charme e sabor de nada para um bolo de conveniências.
Ultimamente meu hálito é tão doce que contamina meus planos, amargando os resultados e enfadando meus alvos.
Ultimamente, quero voar como quer um carvalho enraizado.
Petrificar-me para não putrefazer em sentimentos.
E das pessoas, de todas elas, ter somente admiração que se tem de estátua. Eternamente!
É solitário sentir a morte. Seu cheiro e seu peso. Morte do sonho que ironicamente deixa o corpo vivo para o velório da alma. É inevitável a ira que brota da impotência, e frívolo, saber que desse esterco, adubo o conforto que cresce na arte, minha companheira mais fiel.


Marcos gacê

quinta-feira, 27 de junho de 2013

NEM TUDO É JAZZ!


"É possível que eu esteja, agora, nesse exato momento, me comunicando com um produto da minha mente. Pode ser que não exista nada e que tudo é produto dos meus sentidos, inclusive você que está lendo esse “hãslhhsh”. E deve estar se perguntando: como pode não existir nada fora de você sendo que estou aqui te lendo? Te respondo: tive que criar semelhantes a mim. Estranhamente a solidão persuade antes do entendimento. Mudei várias características porque seria um tédio viver comigo mesmo em todo lugar que minha mente cria para meu próprio destino.
Bom, mas vamos mudar de assunto. Preciso de uma contradição, posto que se não, vou falar o que não devo pra mim mesmo. Tudo no universo está em movimento. Aliás, dois imprescindíveis movimentos: rotação e expansão.
Duas coisas formam tudo que conhecemos: energia e matéria. Sem o movimento não seria possível a formação de nada. É o movimento que determina o encontro de partículas que formam tudo. A energia vem e cola. Uma vez que esta também é excitação de elétrons. Se eu ficar com meu braço parado, a energia e a matéria em volta dele (braço também é matéria e energia, tá?) terá um tipo de reação. Se eu movimentar o meu braço, desloco energia e partículas ao redor dele, criando uma onda de reações. Movimento. As partículas e moléculas de oxigênio, por exemplo, no arraste do braço vão empurrando suas vizinhas, criando uma onda interminável.
O que falo determina seu movimento. O que ouço de você determina o meu. O que você entende do que falo, determina que tipo de movimento você vai fazer e vice-versa. Por isso para mim não existe Deus. Não existe milagre. Assim como o cérebro aciona o sistema imunológico para produzir no corpo, glóbulos, secreções e outros tipos de defesas contra um vírus, por exemplo, ele pode também reconstituir tecidos, matar células cancerígenas, produzir mais ou menos substância e afins. Isso não acontece com frequência, pois não sabemos explorar com maior destreza o nosso cérebro, e é aí que entra a questão da fé. Daquilo que se chama de “fé”. Fé é tirar mais proveito do cérebro do que o normal, fazendo com que ele nos cure, nos faça sentir e nos faça movimentar a ponto de deslocar ondas de energia e matéria até ser montado ou construído o objeto de desejo. Ao passo que: se não pensarmos com mais eficiência não se terá fé, não se terá movimento e não se terá o que se deseja. Amém?!"
Aí o celular toca pela vigésima terceira vez. Dele, uma voz debaixo de dois edredons se arrasta já quase sem esperança: "pare de beber! “Vembora” pra casa vagabundo, você tem que trabalhar daqui a pouco, seu cretino."

Marcos Gacê

terça-feira, 11 de junho de 2013

AH! SE A VIDA FOSSE BALDEAR.


Houve um tempo em que eu andava mais de ônibus. A maioria das pessoas fazem isso quando não tem seus carros. E eu, só andava. Não era transporte, era meio de locomoção: um dos itens da derradeira cartilha da vida inventada. Uma rotina pra se cumprir. Eu era mais um pedaço de carne se locomovendo no esquema sistematizado da sociedade. O curioso é que em algum momento da “evolução” algo dá errado, ou certo demais. Deixamos de ser carnívoros para ser gourmet. De ser destinatários para ser razão de itinerários.  
Porém, esse “blá-blá-blá” tem sua compensação. Usar o ônibus não é só ficar pulando de galho em galho. É preciso apreciar o ponto. O ônibus te faz esperar, você não o controla, se tem uma estimativa de quando ele passa. No ponto é possível sentar na angústia ou na oportunidade de ler e ser lido, ser o ouvido, informar-se aos goles mastigados, observar o gado, guiando propriedades ilusoriamente claustrofóbicas, muitas vezes, financiadas em até 60 meses.
E passam-se os ônibus! É engraçado como estamos sempre querendo viajar, sempre à iminência de obedecer a uma misteriosa força perdigueira. E os ônibus passam! Tripudiam a carência que escorre do canto da boca aberta. Passam vazios, lotados, curiosos, limpos, sujos... param quase em cima da gente. E dá vontade de penetrá-los! Pois a vida não foi feita para esperas e nem demoras. Já entrei em muitos e nunca me arrependi. Quando se tem coragem, certas doutrinas caem por terra e é revelada a recompensa das novas experiências.
No ônibus é possível encontrar inteligências para todos os gostos; o silêncio é colorido e randômico; os cheiros atrevidos, arrogantes, perniciosos e concupiscentes ao mesmo tempo, por não serem exalados por regras e nem ordem conveniente. Os olhares são todos os semáforos possíveis, de vastas cores guiando um tráfego frenético de pensamentos. No ônibus tem furto, tem gentileza, tem volúpia e o amor sempre pega carona por passar desapercebido à falta de “autoridade”. No ônibus você ri, chora, dorme. No ônibus a viagem nunca é a mesma, tem sempre uma expectativa do bem ou do mal. O ônibus te leva, te busca e te entrega, onde quer que você queira. Do ônibus se esquece, se lembra, se quer a chegada, quase de graça, sem satisfações. No ônibus se entra: em uns, por traz, em outros, pela frente. Não se pede permissão para pegar. Aquele que você quiser, vai te levar às suas escolhas, as quais, provavelmente, o habitual não levaria.
E é “nele”, não como boi, mas como águia, que se conclui: o “transporte” deveria ser feito somente pelos ônibus, mas com uma condição: que seus usuários deixassem de ser, somente, malotes de carne e osso de um lado para o outro e aprendessem a aproveitar a vida que não se tem naquilo que é o sonho da maioria das pessoas: a posse e o cárcere do “carro próprio”. Onde o diálogo é menor ou nulo, onde o calor é condicionado e geralmente se está só. Se goza só, sob a apólice de seguro das poucas liberdades.
Eu tenho carro próprio, mas me dá saudade de andar de ônibus.



Marcos Gacê

Revisão: Marçal Filho





sábado, 27 de abril de 2013

A MULHER QUE ME ENGRAVIDOU




Ruiva! Media 1,67m. Tinha um longo pescoço sustentando aquele rosto oval, impregnado de olhos verdes, cheio de bocas nas mais variadas condições de oratória e destreza física. O nariz seccionava um lago de sardas charmosas – adorno meio Art Nouveau que fazia jus à classe de sua concupiscência. Quase infantil no abraço, sem deixar nenhuma possibilidade de pedofilia. Corpo esguio, branco, tatuado por aquela mesma espécie de sardas que eram seixos no leito dos seios, dos quadris e do púbis. Um cheiro para poucos – se existe pecado, este seria, expor a olfatos de senso comum, tal iguaria aromática rara. Louca por literatura, filmes italianos e franceses, Chet Baker e Chiquinha Gonzaga. A perfeição, forjada de defeitos pervertidos. Eu sempre tive um fascínio pelas ruivas, talvez por não serem as minhas preferidas e, os paradoxos tem lá seus domínios sobre mim. Seu nome? Recuso-me a dizer - não é nada oneroso para esse conjunto na mulher que roubava minhas respostas e as escondia entre as trincheiras do cabelo longo, no aconchego da boca e na insanidade da vulva. Certas mulheres não carecem de nome, porque não carecem de chamado. Elas sentem o cheiro de sua urgência, como “Ela” sentiu o meu naquela tarde de maio sem ano.
Balbuciava Nina Simone, acho que era Feeling Good, quando saiu do banho ajeitando a toalha sobre os seios. O cabelo era um tronco retorcido, nascendo das costelas e abraçando o pescoço. As gotas de água deslizavam sobre a pele como carinho de mão. De repente tudo parou e ela aconteceu nua sobre mim e sobre todas as horas do resto daquele dia.
Então veio a gravidez. Era inevitável e preciso. Os sintomas começaram a aparecer meses depois que “Ela” sumiu no mundo, sem dar notícias. As dores começaram a ficar mais fortes e as contrações pareciam ondas gigantescas impondo uma nova geografia, preparando a existência para receber uma dádiva – o fruto de uma paixão que não deve ser condenada por ter sido tão efêmera – ela era a compilação de uma vida inteira na beleza de poucos dias. Entrei em trabalho de parto, fechei os olhos e me confortei nos sentimentos e sensações, que eu havia vivido com ela meses atrás, ainda impregnados em meu corpo, e dei a luz à minha filha mais querida. Simples. Linda. Saiu de mim já com letra e melodia e atende pelo nome de “Ilha-me”

Marcos Gacê




Correção: Vanderlei Timóteo - http://vanderleitimoteo.wordpress.com/

terça-feira, 23 de abril de 2013

VIDA ARRIADA



O "Juca Batista" é um conjunto habitacional de prédios, aqui “nas Itabira”. As garagens nem sempre são para guardar carros. Há uns 10 anos atrás, eu subia de carro e via numa dessas garagens uma fabriqueta de celas de montaria. Muito couro, formas, enfeites, fivelas, muitas cores, ferramentas, tilintares, encomendas, cheiros, sol, hora do almoço, conversas, contos, promessas, lembranças, sustento, alegria e compromisso. Devia ter um rádio! Claro. Ave Maria, uma breve prece de manhã e a tarde. Tinha pregos e cola. Tecido. Gente entrando e saindo. Tinha os cumprimentos rancheiros, civilizados, atualizados e tinha uma garrafa de café. Eu não a via, mas tinha. Tem até hoje essa lojinha de celas dentro de mim, com uma riqueza indecifrável e com o vigor de seu aparentemente, dono – um senhor de 70 a 80 anos, cabelos brancos, alto de rosto retangular e sulcos longilíneos. Os olhos eram acoplados no sorriso fácil e satisfeito. Sorriso ocupado, sorriso empregado. Sorriso útil. Eu via tudo isso nos 2 ou 3 segundos que meu carro passava em frente a essa loja. Parecia que era uma missão, gravar cada detalhe daquela cena de vida, para reviver nos tempos de hoje. Quando eu passo em frente a garagem, lá está a parede sem placa. Um carro é o novo inquilino e do lado de fora, perto da metade do portão que guarda o valioso bem automotivo, que certamente não precisa de cela e nem tradição, sentado sozinho numa cadeira nua, está o mesmo velho, porém com uma nostalgia aposentada tão grande, que pende seu olhar para o nada.


Marcos Gacê