segunda-feira, 28 de novembro de 2011

ARMA BRANCA.



Acordei tarde hoje. Mesmo assim vou tomar um café com mais tempo. Sentado. Sinto, especialmente hoje, que preciso cuidar mais de mim, aliás, preciso cuidar do que está à minha volta, das coisas que vejo, das coisas que toco. Que diabos é essa vontade de cuidar do mundo? Talvez não seja cuidar, mas fazer alguma coisa por ele. Estou com medo de entrar no carro e ir trabalhar, principalmente pelo trânsito: essa serpente interminável expelindo veneno por todos os lados. Os homens desferem palavrões ao lado de seus filhos no banco de passageiro, como se estivessem num ritual de iniciação. A vida se esquiva dos carros, dos socos, das facas e das balas, como uma menina magrela e branca seminua procurando abrigo nas sombras, simplesmente para não ser percebida correndo o risco de qualquer acaso ceifar-lhe a vida banal e patética. Não adianta! Preciso sair. Tenho que trabalhar e viver, mas hoje eu não vou com medo. Vou armado pro trabalho, para o trânsito e para vida. Vou começar a por ordem nessa quarta-feira amarelada. Vou sacar a arma para o primeiro que sair da linha. Em certos momentos agir fala mais do que conversar. Entrei no carro, o carro na rua, a rua na avenida, a avenida no direito dos outros e o direito na volatilidade das conveniências. A paz, até então, me incomodava. Estava determinado e ansioso para por em prática a nova missão. Só precisava de um motivo: um esbarrão, uma discussão.
O fim do expediente chegou no meu ouvido e disse com um hálito frio: - Vamos embora e é melhor você passar pelo bairro São Francisco, o trânsito no centro já está infernal. Era o que eu queria: Praça Acrísio de Alvarenga, redonda. Redemoinho de caos e falta de planejamento. São dezoito horas e treze minutos, a tensão surge, sentada, cantarolando, ao meu lado na roda gigante nervosa, caótica com as últimas notas de “Ave Verum Corpus” no azul queimado da tarde de horário de verão... E pronto! O provável acontece: um sujeito barbudo e cansado bate no meu pára-choque traseiro e o afunda. No retrovisor, o cara já está saindo do carro carregando junto com sua nova preocupação, todas as outras mazelas do dia e uma boca revoltada:
- Por acaso hoje é domingo? Hoje é dia de ficar passeando? Se você não fosse tão retardado eu não teria batido em você, filho da puta, desgraçado. Estou cansado de ter que aturar gente lerda no trânsito, folgados, playboys, idiotas que saíram da auto-escola ontem e pensam que são motoristas só porque tem um pedaço de papel plastificado nas mãos. Estou cansado de ser insultado por gente que acha que é dono da via e que pode fazer o que quiser inclusive atropelar uma senhora de 60 anos porque o sinal estava verde, mas ela estava ainda no meio da faixa de pedestre – e fez uma pausa para bufar, quando me inclinei para ele:
- Calma meu amigo! Vamos resolver isso de uma forma diferente. Vou te ensinar como se deve tratar as pessoas no trânsito.
A face dele saltou inteira para minha mão direita que ia em direção ao bolso de dentro do paletó. Numa fração de inocência, tomei três tiros: um no peito, um no pescoço e outra na fronte.
Morrendo, ocorreu-me que as pessoas são a medida exata do que sofrem, vêem e buscam. Respirar, ponderar e aprender são atitudes que suprem nossa bagagem e determinam o que empunhamos. Aquele homem já trazia em sua cintura uma arma de fogo, enquanto eu jazia no asfalto com uma rosa branca grudada na mão.
Marcos Gacê

terça-feira, 23 de agosto de 2011

REVELAÇÃO



Abri mais uma vez os olhos num domingo bonito, preguiçoso e, aí veio a transição: você está num mundo onde tudo é possível e num bocejar já é realidade. É lamentável deixar o sonho, mas já me acostumei. Nem lamento mais, o fato de deixar, mais uma vez inacabadas, as coisas tão possíveis e satisfatórias que só ocorrem do lado de lá dos meus olhos fechados. Enfim!
Lembrei-me de um compromisso firmado com quem, nesse momento, não interessa muito saber o nome. O fato é que eu deveria fotografar uma modelo. Era uma barganha de favores que também não interessa nem um pouco entrar em detalhes que, certamente, tornarão essa prosa enfadonha por demais.
Entramos no carro e seguimos, durante uns vinte quilômetros após os limites da cidade, por uma estrada de terra até um velho sobrado no meio do mato fechado. Era um tanto bucólico o lugar. Aquele seria o cenário para a sessão de fotos.
Saí do carro. Seco, transparente, indiferente, sonolento, óbvio como quem vai comer mais um prato de feijão com arroz.
Peguei o equipamento. A velha Canon analógica, rolos de filmes, tripé e as objetivas. Tudo normal, tudo mesmo! É incrível como a rotina nos cega e padroniza os sentidos e ações. Um truque perfeito do acaso para te esbofetear com o extraordinário.
Ela aparece! Aparece na varanda de cima do sobrado e debruça no parapeito de madeiras robustas que acabara de ganhar um tom azul radiante. Tinha árvores grandes ao redor, com folhagens verdes. Um céu regateiro de um azul exibido e animado.
As pessoas se ajeitavam técnica e convenientemente naquele domingo, enquanto eu já com a máquina empunhada, escolhia os melhores ângulos e planos de fundo para enquadrar aquela menina intrigante.
Cabelos ruivos, pupilas afogadas numa pequena bolsa de mel, pele branca, escoltada por pelos dourados que marchavam numa só direção ao comando de sua respiração voluptuosa. A boca ficava semi-aberta, abandonada, como se estivesse nua. E era linda aquela boca. Não era molhada, era úmida, era culpada, precocemente, de todas as delicias ilícitas que podia causar. E o pior: se camuflava na inocência evidente e protetora.
Cada pose era um assalto, uma afronta a resistência alheia. O corpo branco e longilíneo se encaixava no tempo, no cenário e nas minhas vontades incontroláveis. Nunca conversei, fiz propostas, e negociei tanto pelo olhar, como naquele dia. Nunca cometi com alguém, tanto crime de uma só vez sem sermos notado por ninguém. Ela era perfeita e cúmplice. Era a soma dos melhores resultados das minhas derradeiras práticas venusianas.
Nunca tinha visto e nem registrado um olhar que me desse tanto de sua dona. Como se ela não tivesse controle ao tirar tudo que queria de mim. E isso tudo durou até a noite que também chegou naquele lugar de forma diferente: feito uma amante para o domingo, geralmente antiquado e puritano demais.
Era hora de ir. Acabou! Parece que eu tinha acordado naquele momento. O sabor da realidade veio às vinte horas e trinta e três minutos, amarga e fria. Só não foi mais intragável por causa das réstias de aromas, flashes, e arrepios daquele domingo que foi o mais real de tudo que sonhei até hoje num ser humano.
- Correios! O carteiro gritou lá fora em plena quarta-feira.
- As fotos! Eu gritei dentro de mim como se acordasse naquele domingo.
Abri o pacote como se voltasse no tempo.
Comecei a chorar com as fotos na mão. Juro!Não suportei a emoção!
O tom quente das madeiras do sobrado, os matizes das folhas com seus inúmeros tons de verde, o amarelo do sol daquela manhã descansando nas pedras do terreiro, o azul do céu fazendo pose para o primeiro plano de algumas fotografias, o burburinho das pessoas, a preguiça daquele domingo, até o sonho interrompido estava naquelas fotos.
Menos a menina dos olhos afogados em mel.


Gacê

sexta-feira, 29 de julho de 2011

PLANO DE ASSASSINATO


Ontem foi a gota d’água. Cheguei às quatro da manhã com a cara parecendo ônibus no horário de pico. Mais uma vez sob a influência “dele”.
Ele é alguém que entrou em minha vida, faz alguns anos. Inteligente, persuasivo, galante, divertido. É aquela companhia ideal para os momentos nos quais você só pensa em fugir. Sumir. Tem sempre uma solução e um caminho para te levar à quase todo tipo de diversão e distração. Chega o fim do dia, você cansado do trabalho, das chateações de casa, das dívidas, de todo tipo de tarefas e compromissos, e eis que ele aparece com aquela conversa fácil:
- Marcos, meu amigo! Você merece um descanso. Vamos lubrificar as cordas vocais e molestar as idéias normais!
E você acaba indo fazer bobagem, gastar dinheiro, ficar bêbado na rua, falar o que quer e o que não quer com qualquer um, perder noites de sono e outras coisas que só com o tempo você percebe que perdeu.
Sabe, às vezes tenho a nítida sensação de que ele me assiste nessa procissão de autodestruição, aos berros e gargalhadas. Sempre vislumbro essa imagem ao meu lado. Como um vulto, um irmão, audaciosamente, siamês.
Já tentei me livrar dele, mas não consigo. Esse sujeito tem me feito mal. Ele me seduz. Isso é fato. Estou preso a ele. De alguma forma seu poder vem se apossando cada vez mais de mim.
Ele está aos poucos tomando minha vida, meu dinheiro, meu sono e o pior: deu pra mexer até com minha mulher. Fiquei sabendo que o filho da mãe anda ligando pra ela tarde da noite. Isso eu não vou aceitar. Só tem um jeito de por fim nessa novela: vou matar esse folgado.
Ontem foi quinta-feira, saí do escritório por volta das dezoito horas e ele já estava esperando do outro lado da rua. Aproximei-me animado e já fui logo mandando ver:
- sabe aquele negócio que você vive me propondo fazer?
Ele responde com cara de premiado:
- Sim, claro!
Eu disse – é hoje! Tomei coragem. Vamos ver no que isso vai dar.
Eu já havia colocado um pedaço de pau no carro, atrás da minha poltrona de forma tal que ele não pudesse perceber. Fomos para um lugar, o qual não vem ao caso descrever, e que chamo de “meu recanto”. Nessas minhas dependências, mandei fazer uma edificação para guardar certas tralhas que não uso mais. Uma sala fechada, sem janelas e com perfeito isolamento acústico. Somente uma porta faz a conexão do mundo de cá com o de lá de dento.
Ao chegar, ele foi logo em direção a porta. Parou e colocou as duas mãos para frente facilitando o emaranhado de nós que eu faria com as cordas que ele mesmo havia comprado afim de que um dia fizéssemos uma experiência ousada e que até então eu resistia por convicções próprias.
Depois de deixá-lo nu, amarrado e devidamente amordaçado, o conduzi pra dentro do barraco sem luz. Os olhos do rapaz, de tão excitados, eram as únicas esperanças de luz naquele breu. A euforia durou somente o tempo de eu ir ao carro e voltar guarnecido de um vazio existencial no peito e um pedaço de braúna na mão.
Aqueles mesmos olhos, bruscamente, mudaram de cor, inundados de pavor ao ver aquele pedaço de pau, assassino, flertando com a disposição no meu rosto.
Pensei: - esmago a cabeça dele para que não haja gritos ou qualquer outro barulho que possa me comprometer? Ou...
O rosto jovem e atraente se inundava de choro mudo e os malditos olhos que gritavam algo parecido com suicídio, se aplacaram quando balbuciei:
- Gacê, eu não vou te matar. Vou te deixar aqui trancado, por tempo indeterminado, sem visão, sem tato, sem olfato, sem paladar e sem audição pra ver se minha vida tem sentido sem você.
Marcos Gacê

terça-feira, 26 de julho de 2011

LIBERDADE EM CAMDEN TOWN



- Eu só queria tirar minha roupa, viver nua, pelada o dia inteiro. Comer pelada, brincar pelada, estudar pelada, namorar pelada. Ah! Essa seria a melhor parte.
- Por quê? Porque não existe nada igual ao que eu tenho debaixo da roupa. Ninguém é igual debaixo da roupa. Cada homem é um mundo debaixo de seu pano. Vestida, minhas pernas azuis se juntam a mais quinhentas mil pernas azuis. Meus braços amarelos são irmãos gêmeos de outros tantos.
- Menina, vai vestir roupa. Cuide de sua roupa. Troque sua roupa – Foi o que sempre ouvi. Todo mundo obedece, de um jeito ou de outro. Já vi gente que se desnudou com as próprias mãos. Talvez estivesse apertada demais, ou cheirasse mal, ou provocasse alergia. Enfim!
- Durante os anos em que deixei de ser menina, algo, que não sei explicar nem nos dias de hoje, aconteceu. Coisa maior que minhas indumentárias. Eu, involuntariamente, crescia dentro da roupa. E ela foi apertando meus seios, minhas nádegas, minha vagina, minhas coxas e meus sentimentos como uma laranja. Foi aí que comecei a gritar. O grito provocou os olhares, chamou a atenção. Todo mundo olhou para minhas vestes claustrofóbicas. Meu Deus, que diabo! É isso, só isso que sabem ver? É só isso que vocês querem? É só isso que importa? Enfim!
- Então deixei que viessem tocar, surrar, derramar seus fluídos. Não lavei, não passei, não troquei. Nela caíram labaredas de fogo, de feto, de álcool, de ópio, de coca e cola. Os buracos se tornaram janelas para a entrada do sabor do sol, das águas nuas da chuva, do agrado arrepiado do vento e suas mil mãos. As janelas se tornavam portas para eu ver as flores, os bichos, os rios, os beijos e os olhos dos que são chamados de loucos e pelados.
A moça fez uma pausa e com ela tudo ao redor se calou.
E eu, que andava tranquilamente a ermo naquela tarde de sábado, em julho de 2011, senti a atmosfera, ao mesmo tempo, em todas as partes do corpo. E emergi do silêncio como quando as águas te lançam para cima no processo de afogamento:
- Meu Deus, por que não te conheci antes?
Ela disse sem cor:
- Não se preocupe. Não é só você que se pergunta isso agora.
Eu, sem controle e admirado:
- Beija-me?
Ela disse sem forma:
- Agora é tarde. A não ser que se livre de sua roupa.

Marcos Gacê

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O VEREDICTO


Sempre aprendi a respeitar a casa dos outros e a conquistar a confiança dos anfitriões. Fui criado assim e preservo tais sistemas até os dias de hoje.
Lembro-me de uma vez, quando na ocasião de um festival da canção, na cidade de Ipatinga, em que coloquei a prova essa minha conduta. Fui me apresentar nesse evento junto ao meu parceiro musical e amigo Marçal. Era sábado e o concurso começaria por volta das vinte horas. Se fôssemos para a final no domingo, teríamos que pernoitar naquela cidade.
Marçal era filho do anfitrião, aquele que nos recebera no momento em que chegamos à cidade. Um senhor de olhar longínquo, de palavras ralas. Muito observador e ouvinte. As pessoas naquele pedaço de terra faziam-lhe reverências, à medida que iam chegando ao quintal. Aqueles cabelos brancos, passos meticulosos, administravam o local com maestria centenária. Isso era notório!
Pensei: é aqui que vamos ficar. Preciso impressionar e ganhar a confiança do monarca. O problema era: o que fazer, uma vez que minha fala tranquila e gestos de polidez não produziam efeito algum? O velho andava pra lá e pra cá, com ar de fiscal tirando minha quietude. Eu me convencia: não tenho cara de passar a noite aqui. Envergonhado, peguei a viola para relaxar. O Marçal, fominha de música, não podia escutar um acorde vadio que já improvisava show. Nisso, chamou seu pai para apreciar minha apresentação. Pensei: é agora! Escolhi uma canção cheia de agudos e facetas vocais para impressionar. Se o moço gostar, quem vira rei nesse pedaço sou eu. O velho chamou todo o mundo, até sua esposa que se ocupava dos afazeres domésticos com certa devoção. Parecia um tribunal. Inspirei, respirei e comecei a cantar. A melodia, linda, bailava com as notas altas e longas que saiam de minha garganta acuada. O silêncio emocionado pairava no ar. Aquela figura que, de certa forma, era uma ameaça ao meu pernoite me Ipatinga se curvava lentamente em minha direção. A expressão dele se encolhia, à medida que a música crescia. Parecia ver algo divino em mim. A admiração era notória! Eu vibrava por dentro, já imaginando a premiação. Já sentia o calor dos aplausos. Era como se estendessem um tapete vermelho nos meus ouvidos para o desfile da frase: “seja bem-vindo: a casa é sua!”.
A música acabou. O velho se curvou para meu pescoço e fitou minha garganta como um arqueólogo diante da ossada de Jesus e disse, interrompendo o silêncio infernal que corrói qualquer avaliado: “ÔH, GUELA BOA PRA UMA FACA”.


Gacê
Revisão: Sônia Oliveira

quarta-feira, 20 de julho de 2011

PENO CALADO



Engraçado! Considero-me um pensador. Minha cabeça tem mil coisas: idéias, planos e conceitos, na maioria das vezes, comprometem minha estada nessa sociedade convenientemente implantada. Eu penso sobre o amor e o que ele é. Sim, tenho teorias interessantes. Ainda tem sexualidade, relacionamentos, Deus, sonhos, poder, matar, dominar, bem e mal, e por aí vai. Acreditem: minhas idéias a respeito desses assuntos me condenam. Eu seria apedrejado, linchado, preso, abandonado e ridicularizado se viessem à tona. Bom, não sejamos tão exagerados, tem uma parcela de seres que se deleitariam com tais novidades.
Pretensioso? Não sei. Não é essa a questão aqui. O fato é que sou um preguiçoso e sofro com a impotência das mãos que não buscam o registro. Peno, diariamente, como se estivesse numa matinê, ocupando uma das centenas de poltronas na minha cabeça, diante do telão, vendo um filme de idéias passarem. Só passarem. Sou um preguiço e o engraçado é que lendo o blog de uma mocinha, tomei uma surra. Uma surra de atitude. Ela não fala coisa com coisa, mas pelo menos fala.


Gacê