sexta-feira, 29 de julho de 2011

PLANO DE ASSASSINATO


Ontem foi a gota d’água. Cheguei às quatro da manhã com a cara parecendo ônibus no horário de pico. Mais uma vez sob a influência “dele”.
Ele é alguém que entrou em minha vida, faz alguns anos. Inteligente, persuasivo, galante, divertido. É aquela companhia ideal para os momentos nos quais você só pensa em fugir. Sumir. Tem sempre uma solução e um caminho para te levar à quase todo tipo de diversão e distração. Chega o fim do dia, você cansado do trabalho, das chateações de casa, das dívidas, de todo tipo de tarefas e compromissos, e eis que ele aparece com aquela conversa fácil:
- Marcos, meu amigo! Você merece um descanso. Vamos lubrificar as cordas vocais e molestar as idéias normais!
E você acaba indo fazer bobagem, gastar dinheiro, ficar bêbado na rua, falar o que quer e o que não quer com qualquer um, perder noites de sono e outras coisas que só com o tempo você percebe que perdeu.
Sabe, às vezes tenho a nítida sensação de que ele me assiste nessa procissão de autodestruição, aos berros e gargalhadas. Sempre vislumbro essa imagem ao meu lado. Como um vulto, um irmão, audaciosamente, siamês.
Já tentei me livrar dele, mas não consigo. Esse sujeito tem me feito mal. Ele me seduz. Isso é fato. Estou preso a ele. De alguma forma seu poder vem se apossando cada vez mais de mim.
Ele está aos poucos tomando minha vida, meu dinheiro, meu sono e o pior: deu pra mexer até com minha mulher. Fiquei sabendo que o filho da mãe anda ligando pra ela tarde da noite. Isso eu não vou aceitar. Só tem um jeito de por fim nessa novela: vou matar esse folgado.
Ontem foi quinta-feira, saí do escritório por volta das dezoito horas e ele já estava esperando do outro lado da rua. Aproximei-me animado e já fui logo mandando ver:
- sabe aquele negócio que você vive me propondo fazer?
Ele responde com cara de premiado:
- Sim, claro!
Eu disse – é hoje! Tomei coragem. Vamos ver no que isso vai dar.
Eu já havia colocado um pedaço de pau no carro, atrás da minha poltrona de forma tal que ele não pudesse perceber. Fomos para um lugar, o qual não vem ao caso descrever, e que chamo de “meu recanto”. Nessas minhas dependências, mandei fazer uma edificação para guardar certas tralhas que não uso mais. Uma sala fechada, sem janelas e com perfeito isolamento acústico. Somente uma porta faz a conexão do mundo de cá com o de lá de dento.
Ao chegar, ele foi logo em direção a porta. Parou e colocou as duas mãos para frente facilitando o emaranhado de nós que eu faria com as cordas que ele mesmo havia comprado afim de que um dia fizéssemos uma experiência ousada e que até então eu resistia por convicções próprias.
Depois de deixá-lo nu, amarrado e devidamente amordaçado, o conduzi pra dentro do barraco sem luz. Os olhos do rapaz, de tão excitados, eram as únicas esperanças de luz naquele breu. A euforia durou somente o tempo de eu ir ao carro e voltar guarnecido de um vazio existencial no peito e um pedaço de braúna na mão.
Aqueles mesmos olhos, bruscamente, mudaram de cor, inundados de pavor ao ver aquele pedaço de pau, assassino, flertando com a disposição no meu rosto.
Pensei: - esmago a cabeça dele para que não haja gritos ou qualquer outro barulho que possa me comprometer? Ou...
O rosto jovem e atraente se inundava de choro mudo e os malditos olhos que gritavam algo parecido com suicídio, se aplacaram quando balbuciei:
- Gacê, eu não vou te matar. Vou te deixar aqui trancado, por tempo indeterminado, sem visão, sem tato, sem olfato, sem paladar e sem audição pra ver se minha vida tem sentido sem você.
Marcos Gacê

terça-feira, 26 de julho de 2011

LIBERDADE EM CAMDEN TOWN



- Eu só queria tirar minha roupa, viver nua, pelada o dia inteiro. Comer pelada, brincar pelada, estudar pelada, namorar pelada. Ah! Essa seria a melhor parte.
- Por quê? Porque não existe nada igual ao que eu tenho debaixo da roupa. Ninguém é igual debaixo da roupa. Cada homem é um mundo debaixo de seu pano. Vestida, minhas pernas azuis se juntam a mais quinhentas mil pernas azuis. Meus braços amarelos são irmãos gêmeos de outros tantos.
- Menina, vai vestir roupa. Cuide de sua roupa. Troque sua roupa – Foi o que sempre ouvi. Todo mundo obedece, de um jeito ou de outro. Já vi gente que se desnudou com as próprias mãos. Talvez estivesse apertada demais, ou cheirasse mal, ou provocasse alergia. Enfim!
- Durante os anos em que deixei de ser menina, algo, que não sei explicar nem nos dias de hoje, aconteceu. Coisa maior que minhas indumentárias. Eu, involuntariamente, crescia dentro da roupa. E ela foi apertando meus seios, minhas nádegas, minha vagina, minhas coxas e meus sentimentos como uma laranja. Foi aí que comecei a gritar. O grito provocou os olhares, chamou a atenção. Todo mundo olhou para minhas vestes claustrofóbicas. Meu Deus, que diabo! É isso, só isso que sabem ver? É só isso que vocês querem? É só isso que importa? Enfim!
- Então deixei que viessem tocar, surrar, derramar seus fluídos. Não lavei, não passei, não troquei. Nela caíram labaredas de fogo, de feto, de álcool, de ópio, de coca e cola. Os buracos se tornaram janelas para a entrada do sabor do sol, das águas nuas da chuva, do agrado arrepiado do vento e suas mil mãos. As janelas se tornavam portas para eu ver as flores, os bichos, os rios, os beijos e os olhos dos que são chamados de loucos e pelados.
A moça fez uma pausa e com ela tudo ao redor se calou.
E eu, que andava tranquilamente a ermo naquela tarde de sábado, em julho de 2011, senti a atmosfera, ao mesmo tempo, em todas as partes do corpo. E emergi do silêncio como quando as águas te lançam para cima no processo de afogamento:
- Meu Deus, por que não te conheci antes?
Ela disse sem cor:
- Não se preocupe. Não é só você que se pergunta isso agora.
Eu, sem controle e admirado:
- Beija-me?
Ela disse sem forma:
- Agora é tarde. A não ser que se livre de sua roupa.

Marcos Gacê

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O VEREDICTO


Sempre aprendi a respeitar a casa dos outros e a conquistar a confiança dos anfitriões. Fui criado assim e preservo tais sistemas até os dias de hoje.
Lembro-me de uma vez, quando na ocasião de um festival da canção, na cidade de Ipatinga, em que coloquei a prova essa minha conduta. Fui me apresentar nesse evento junto ao meu parceiro musical e amigo Marçal. Era sábado e o concurso começaria por volta das vinte horas. Se fôssemos para a final no domingo, teríamos que pernoitar naquela cidade.
Marçal era filho do anfitrião, aquele que nos recebera no momento em que chegamos à cidade. Um senhor de olhar longínquo, de palavras ralas. Muito observador e ouvinte. As pessoas naquele pedaço de terra faziam-lhe reverências, à medida que iam chegando ao quintal. Aqueles cabelos brancos, passos meticulosos, administravam o local com maestria centenária. Isso era notório!
Pensei: é aqui que vamos ficar. Preciso impressionar e ganhar a confiança do monarca. O problema era: o que fazer, uma vez que minha fala tranquila e gestos de polidez não produziam efeito algum? O velho andava pra lá e pra cá, com ar de fiscal tirando minha quietude. Eu me convencia: não tenho cara de passar a noite aqui. Envergonhado, peguei a viola para relaxar. O Marçal, fominha de música, não podia escutar um acorde vadio que já improvisava show. Nisso, chamou seu pai para apreciar minha apresentação. Pensei: é agora! Escolhi uma canção cheia de agudos e facetas vocais para impressionar. Se o moço gostar, quem vira rei nesse pedaço sou eu. O velho chamou todo o mundo, até sua esposa que se ocupava dos afazeres domésticos com certa devoção. Parecia um tribunal. Inspirei, respirei e comecei a cantar. A melodia, linda, bailava com as notas altas e longas que saiam de minha garganta acuada. O silêncio emocionado pairava no ar. Aquela figura que, de certa forma, era uma ameaça ao meu pernoite me Ipatinga se curvava lentamente em minha direção. A expressão dele se encolhia, à medida que a música crescia. Parecia ver algo divino em mim. A admiração era notória! Eu vibrava por dentro, já imaginando a premiação. Já sentia o calor dos aplausos. Era como se estendessem um tapete vermelho nos meus ouvidos para o desfile da frase: “seja bem-vindo: a casa é sua!”.
A música acabou. O velho se curvou para meu pescoço e fitou minha garganta como um arqueólogo diante da ossada de Jesus e disse, interrompendo o silêncio infernal que corrói qualquer avaliado: “ÔH, GUELA BOA PRA UMA FACA”.


Gacê
Revisão: Sônia Oliveira

quarta-feira, 20 de julho de 2011

PENO CALADO



Engraçado! Considero-me um pensador. Minha cabeça tem mil coisas: idéias, planos e conceitos, na maioria das vezes, comprometem minha estada nessa sociedade convenientemente implantada. Eu penso sobre o amor e o que ele é. Sim, tenho teorias interessantes. Ainda tem sexualidade, relacionamentos, Deus, sonhos, poder, matar, dominar, bem e mal, e por aí vai. Acreditem: minhas idéias a respeito desses assuntos me condenam. Eu seria apedrejado, linchado, preso, abandonado e ridicularizado se viessem à tona. Bom, não sejamos tão exagerados, tem uma parcela de seres que se deleitariam com tais novidades.
Pretensioso? Não sei. Não é essa a questão aqui. O fato é que sou um preguiçoso e sofro com a impotência das mãos que não buscam o registro. Peno, diariamente, como se estivesse numa matinê, ocupando uma das centenas de poltronas na minha cabeça, diante do telão, vendo um filme de idéias passarem. Só passarem. Sou um preguiço e o engraçado é que lendo o blog de uma mocinha, tomei uma surra. Uma surra de atitude. Ela não fala coisa com coisa, mas pelo menos fala.


Gacê