quarta-feira, 14 de março de 2012

A MUDINHA DE PAIXÃO



Eu devo ter uns doze anos, mais ou menos. Moro na esquina da rua da qual não vou morar mais daqui um tempo. Tenho olhos verdes, e vou para a escola todo dia.
Ando meio triste de uns tempos para cá. Aliás, nem sei se é tristeza. É que ultimamente tudo anda tão chato! Não tem mais graça brincar com as bonecas que eu tanto queria no ano passado e agora, tenho que ir para a escola todo dia. Todo dia eu tenho que fazer tarefas, vagar pelo terreiro, debruçar no parapeito de balaustres e ficar olhando o dia morrer na minha cara. Eu não sei que horas chego da escola. Alem do que eu contei aqui, não sei mais nada de mim. Só sei que todo dia eu vou para a escola, porque espero a van no portão da minha casa. É lá que minha paz de criança que não quer mais ser criança e meus olhos claros são roubados por aquele moço que passa no carro preto. Eu não entendo, mas fico com vergonha quando ele passa. Fico sem jeito e curiosa, tem tantas coisas dentro daquele carro... Aquela cara ruim é tão pesada, cheia de passeios, de festas, de brigas, de reencontros, charadas e descobertas. Ele me cumprimenta sem olhar, parece me condenar por eu estar no caminho da sua notável austeridade.
Minha mãe sempre disse para não encarar os estranhos, para não falar com eles e para tomar cuidado, principalmente, com os homens mais velhos. Ela disse que muitos deles conseguem o que quer da gente usando simplesmente palavras. Ah, as palavras! São poucas as minhas, mas são tantas as que querem entrar em mim. Acho que tenho outro jeito de comunicar, de penetrar as pessoas de forma tal, que as tornem incomodadas com um certo tipo de atração natural em mim.
Hoje estou usando, especialmente, as palavras porque sei que ninguém vai ler sobre o moço do carro preto. E talvez um dia eu as use, demasiadamente, com ele. Quero saber por que me dá vontade de sair da rotina do portão, do balaustre e pedi-lo pra que leve embora minhas dúvidas, minhas vontades estranhas e essa vulnerabilidade civil para dentro daquele carro onde tudo cabe. Minha mãe não pode nem sonhar com esse pequeno plano... Ainda bem que preciso ir à escola todos os dias.