terça-feira, 23 de agosto de 2011

REVELAÇÃO



Abri mais uma vez os olhos num domingo bonito, preguiçoso e, aí veio a transição: você está num mundo onde tudo é possível e num bocejar já é realidade. É lamentável deixar o sonho, mas já me acostumei. Nem lamento mais, o fato de deixar, mais uma vez inacabadas, as coisas tão possíveis e satisfatórias que só ocorrem do lado de lá dos meus olhos fechados. Enfim!
Lembrei-me de um compromisso firmado com quem, nesse momento, não interessa muito saber o nome. O fato é que eu deveria fotografar uma modelo. Era uma barganha de favores que também não interessa nem um pouco entrar em detalhes que, certamente, tornarão essa prosa enfadonha por demais.
Entramos no carro e seguimos, durante uns vinte quilômetros após os limites da cidade, por uma estrada de terra até um velho sobrado no meio do mato fechado. Era um tanto bucólico o lugar. Aquele seria o cenário para a sessão de fotos.
Saí do carro. Seco, transparente, indiferente, sonolento, óbvio como quem vai comer mais um prato de feijão com arroz.
Peguei o equipamento. A velha Canon analógica, rolos de filmes, tripé e as objetivas. Tudo normal, tudo mesmo! É incrível como a rotina nos cega e padroniza os sentidos e ações. Um truque perfeito do acaso para te esbofetear com o extraordinário.
Ela aparece! Aparece na varanda de cima do sobrado e debruça no parapeito de madeiras robustas que acabara de ganhar um tom azul radiante. Tinha árvores grandes ao redor, com folhagens verdes. Um céu regateiro de um azul exibido e animado.
As pessoas se ajeitavam técnica e convenientemente naquele domingo, enquanto eu já com a máquina empunhada, escolhia os melhores ângulos e planos de fundo para enquadrar aquela menina intrigante.
Cabelos ruivos, pupilas afogadas numa pequena bolsa de mel, pele branca, escoltada por pelos dourados que marchavam numa só direção ao comando de sua respiração voluptuosa. A boca ficava semi-aberta, abandonada, como se estivesse nua. E era linda aquela boca. Não era molhada, era úmida, era culpada, precocemente, de todas as delicias ilícitas que podia causar. E o pior: se camuflava na inocência evidente e protetora.
Cada pose era um assalto, uma afronta a resistência alheia. O corpo branco e longilíneo se encaixava no tempo, no cenário e nas minhas vontades incontroláveis. Nunca conversei, fiz propostas, e negociei tanto pelo olhar, como naquele dia. Nunca cometi com alguém, tanto crime de uma só vez sem sermos notado por ninguém. Ela era perfeita e cúmplice. Era a soma dos melhores resultados das minhas derradeiras práticas venusianas.
Nunca tinha visto e nem registrado um olhar que me desse tanto de sua dona. Como se ela não tivesse controle ao tirar tudo que queria de mim. E isso tudo durou até a noite que também chegou naquele lugar de forma diferente: feito uma amante para o domingo, geralmente antiquado e puritano demais.
Era hora de ir. Acabou! Parece que eu tinha acordado naquele momento. O sabor da realidade veio às vinte horas e trinta e três minutos, amarga e fria. Só não foi mais intragável por causa das réstias de aromas, flashes, e arrepios daquele domingo que foi o mais real de tudo que sonhei até hoje num ser humano.
- Correios! O carteiro gritou lá fora em plena quarta-feira.
- As fotos! Eu gritei dentro de mim como se acordasse naquele domingo.
Abri o pacote como se voltasse no tempo.
Comecei a chorar com as fotos na mão. Juro!Não suportei a emoção!
O tom quente das madeiras do sobrado, os matizes das folhas com seus inúmeros tons de verde, o amarelo do sol daquela manhã descansando nas pedras do terreiro, o azul do céu fazendo pose para o primeiro plano de algumas fotografias, o burburinho das pessoas, a preguiça daquele domingo, até o sonho interrompido estava naquelas fotos.
Menos a menina dos olhos afogados em mel.


Gacê

Um comentário:

  1. Quisera eu ser essa menina dos olhos afogados em mel.A cho que deveria lançar um livro...com seus poemas.Lindos.

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